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A ficcionalização de Santo Agostinho em “Vita Brevis” e o perigo da desinformação histórica 

Vita Brevis: A vida é breve: carta de Flórida Emília a Aurélio Agostinho em Portugal” é uma obra de Jostein Gaarder que se apresenta como uma narrativa ficcional baseada na descoberta de um suposto “Codex Floriae” – uma coleção de cartas da mãe do filho de Santo Agostinho, identificada como Flória Emília. Segundo o autor (Jostein Gaarder), esse códice foi encontrado em um sebo em Buenos Aires e apresenta uma perspectiva inédita e pessoal da relação entre Agostinho e Flória Emília, expressando a insatisfação e discordância dela em relação ao abandono por parte de Agostinho e sua conversão ao ascetismo.

No entanto, a autenticidade do “Codex Floriae” nunca é apresentada ou provada, revelando-se um mero recurso literário. O livro é claramente classificado como ficção tanto pela editora quanto pelas livrarias, e Jostein Gaarder, conhecido por seu trabalho em filosofia popular e literatura juvenil, não tem reconhecimento como tradutor de obras em latim ou como historiador especializado em Patrística. Isso levanta preocupações sobre a percepção pública da obra e a possível confusão que pode causar, especialmente para leitores que não têm familiaridade com a vida e obra de Agostinho de Hipona.

Uma análise mais aprofundada revela que o livro se equivoca gravemente ao atribuir a separação de Agostinho e sua concubina ao ascetismo do santo. Segundo as “Confissões” de Agostinho, especificamente no Livro VI, a verdadeira causa da separação foi um arranjo matrimonial que prometia vantagens financeiras e sociais significativas para Agostinho. Essa decisão ocorreu bem antes de sua conversão ao cristianismo e muito antes de qualquer comprometimento sério com o ascetismo. Após a separação, Agostinho não adotou imediatamente uma vida ascética; ao contrário, ele rapidamente buscou outra concubina devido ao longo período de espera de dois anos para o casamento, já que sua noiva oficial ainda era muito jovem.

A ficcionalização da vida de Agostinho em “Vita Brevis” não só distorce eventos históricos, mas também cria uma narrativa alternativa que muitos leitores podem erroneamente aceitar como verdade. Esse fenômeno reflete um problema maior na era da informação: a dificuldade de discernir entre fato e ficção, especialmente quando uma narrativa ficcional é apresentada com elementos que sugerem autenticidade histórica. A falta de uma leitura crítica e o desconhecimento sobre a verdadeira história de Agostinho levam muitas pessoas a aceitarem essa ficção como fato.

O perigo aqui não reside apenas na perpetuação de uma história falsa, mas na formação de percepções equivocadas sobre figuras históricas importantes como Agostinho de Hipona, cujas obras e ideias moldaram profundamente o pensamento ocidental. Quando uma obra de ficção se disfarça de fato histórico, mesmo que implicitamente, há o risco de que leitores desavisados tomem liberdades criativas como verdades históricas, comprometendo uma compreensão precisa e informada da história.

Portanto, é essencial que leitores e educadores promovam uma abordagem crítica ao engajamento com obras literárias, especialmente aquelas que tratam de figuras históricas e eventos. Compreender o contexto, a intenção do autor e as classificações de gênero literário é crucial para evitar mal-entendidos. Embora a ficção tenha o direito de explorar e reinterpretar o passado, ela não deve ser confundida com história verdadeira. A vida e o pensamento de Agostinho de Hipona são complexos e merecem ser abordados com respeito e rigor histórico, sem distorções que possam desinformar ou enganar o público.

A distinção clara entre fato e ficção é essencial para preservar a integridade da compreensão histórica e garantir que figuras como Agostinho sejam vistas à luz de seus contextos e realidades, não através de lentes ficcionais que obscurecem e distorcem a verdade.

Mauro Nascimento

Referências:

AGOSTINHO, Santo. Confissões/tradução do latim e prefácio de Lorenzo Mammi. 1ª ed. – São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.

GAARDER, Jostein. Vita brevis: a carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho. Companhia das Letras, 2003.

28 de agosto – Santo Agostinho, bispo de Hipona e doutor da Igreja

Santo Agostinho, Fra Angelico (© MET)

Agostinho nasceu no dia 13 de novembro de 354, em Tagaste, África. Foi educado à fé católica pela sua mãe, Santa Mônica, mas não seguiu seu exemplo. Adolescente vivaz, perspicaz e exuberante, dedicou-se ao estudo da retórica e seu resultado foi excelente. Amava a vida e seus prazeres, cultivava amizades, teve paixões amorosas, adorava o teatro, buscava divertimentos e distrações.

Em Cartagena, onde prosseguia seus estudos, apaixonou-se por uma moça; por ser de classe social inferior, fez dela apenas sua concubina; fruto desta relação foi Adeodato. Não obstante a sua jovem idade, Agostinho permaneceu-lhe fiel e assumiu a responsabilidade da vida doméstica. Entretanto, a leitura de Hortensius, de Cícero, mudou seu modo de encarar as coisas. “A felicidade – escreveu o grande orador – consiste nos bens que não perecem: sabedoria, verdade, virtudes”. Assim, Agostinho passou a buscá-las.

A busca da Verdade

Começou a sua busca pela Bíblia. Mas, acostumado com textos retumbantes, a acha grosseira e ilógica. Então, aproximou-se do maniqueísmo. Ao voltar para Tagaste, abriu uma escola de gramática e retórica, com a ajuda de um benfeitor. Porém, a vida que levava, não o satisfazia, por isso, regressou a Cartagena, esperando encontrar uma vida melhor. Porém, continuou insatisfeito. A sua sede de verdade não se aplacava com a doutrina maniqueísta. O jovem retórico promissor passa a outros tipos de busca. Assim, no ano 382, transferiu-se para Roma, com o companheiro e seu filho, sem que sua mãe o soubesse, apesar de ter ido a Cartagena.

Na capital, porém, Agostinho manteve contato com os maniqueístas, dos quais recebeu ajuda e apoio. Depois, entendeu que a Providência atuava também através de escolhas erradas. A sua carreira teve sucesso, tanto que, em 384, conseguiu uma cátedra de Retórica em Milão. Contudo, sua inquietude interior continuava a atormentá-lo.

A conversão: “Pega e lê”

Sua ambição foi saciada, mas seu coração não. Para aperfeiçoar a sua “ars oratoria”, começou a seguir os sermões do santo Bispo Ambrósio. Queria entender suas capacidades dialéticas. Todavia, as palavras do Bispo o atingem profundamente. Neste ínterim, sua mãe Mônica se transfere para Milão, permanecendo ao seu lado, sobretudo, com as orações. No entanto, Agostinho se aproximava, cada vez mais, à Igreja católica, tanto que já se sentia catecúmeno. Agora só lhe faltava uma esposa que fosse cristã e não mais concubina. A mulher, que por anos havia convivido com ele, volta para a África.

Ainda atormentado, Agostinho devora textos de filosofia e mergulha nas Sagradas Escrituras. Era tentado pela experiência dos pensadores grego e atraído pelo estilo de vida dos ascetas cristãos, mas não conseguir se decidir.

Certo dia de agosto de 386, desorientado e confuso, deixando-se levar por um pranto copioso e desesperado, pareceu-lhe ouvir uma voz: “Pega e lê”! Achou que a voz o convidava a tomar em mãos as Cartas de Paulo, que estavam sobre a mesa, e a abri-las por acaso. E leu: “Comportemo-nos honestamente, como de dia, não em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissoluções, nem em contendas e inveja. Mas, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não tenhais cuidado da carne em suas concupiscências” (Rm 13, 13-14). A leitura deste trecho foi-lhe fulgurante. Então, conseguiu mudar de vida e dedicar-se totalmente a Deus. Foi batizado por Santo Ambrósio na noite entre 24 e 25 de abril de 387. Desejoso de regressar à África, partiu para Roma, a fim de embarcar no porto de Óstia. Ali, faleceu sua mãe Mônica.

Primeira comunidade Agostiniana e ministério episcopal

Em Tagaste, Agostinho funda sua primeira comunidade. Entre o fim de 390 e início de 391, encontra-se, casualmente, na basílica de Hipona, onde o Bispo Valério pregava aos fiéis sobre a necessidade de um presbítero na sua diocese. Por entusiasmo popular, Agostinho foi conduzido diante do Bispo, que o ordenou sacerdote. Ciente de ter que viver voltado para Deus, estudando e meditando as Escrituras, compreendeu que era chamado para algo mais. Sucedendo Valério, tornou-se Bispo de Hipona. Deixa numerosos escritos, onde consegue conciliar “fé e razão”. Entre eles, O livre arbítrioA TrindadeA cidade de Deus. Menção particular merecem As Confissões, nas quais Agostinho faz uma auto narração, deixando emergir, em modo magistral, a sua interioridade e a história do seu coração.

Citações

  • “Fizeste-nos para vós, Senhor, e o nosso coração não se dá paz enquanto não descansar em vós” (Confissões 111).
  • “Não saia para fora, mas volte para dentro de si: a verdade reside no interior do homem” (A verdadeira religião, 39, 72).
  • “Ninguém pode atravessar o mar deste século, se não for levado pela cruz de Cristo… não abandone a cruz, pois ela o carregará” (Comentário sobre o Evangelho de São João 2, 2).

Fonte: Vatican News. Acesso em: 25 ago. 2023.

27 de maio – Santo Agostinho, arcebispo de Cantuária (Canterbury)

Santo Agostinho, arcebispo de Cantuária (Joachim Schäfer – Ökumenisches Heiligenlexikon)

Dar o próprio sim ao Senhor significa também aceitar ser enviado para onde a gente não gostaria de ir, ainda mais se fosse o Papa pedir, pessoalmente. Agostino sabia muito bem disso, tanto que deixou a sua vida tranquila de Prior do Mosteiro beneditino de Santo André no Célio, em Roma, para empreender uma longa viagem para terras desconhecidas, que, além do mais, eram hostis. Agostinho aceitou por ter feito, entre outros, o voto de obediência.

Realidade complexa no além-mar

O contexto da Grã-Bretanha, entre os séculos V e VI, não era dos melhores. O país havia sido cristianizado, antes, pelos missionários celtas peninsulares, que haviam feito um excelente trabalho entre os Bretões. No entanto, foram expulsos com a chegada dos Saxões, Anglos e Jutos, povos germânicos pagãos, que começaram a invadir o território, a partir de 596.

Os Bretões, que, por sua vez, se refugiaram entre as montanhas do Gales, recaíram na idolatria. Entretanto, o rei dos Jutos de Kent, Etelberto, que conseguiu alastrar sua influência até ao Essex, Sussex e Leste inglês – terras dominadas pelos Saxões – não demonstrou ser hostil ao cristianismo. Tanto que se casou com Berta, princesa cristã, filha do rei de Paris, concordando com seu pedido para a construção de uma igreja cristã em Kent.

Neste contexto, o santo Papa Gregório Magno, entendeu que os tempos eram propícios para uma nova Evangelização daquelas terras. Esta decisão foi tomada por ficar impressionado com a beleza e a gentileza de alguns escravos ingleses, levados para Roma. Chegando a compará-los aos anjos, o Papa teve a ideia de criar, na Inglaterra, uma nova Igreja, dependente de Roma, como aquela francesa, tomando precisamente o exemplo da França como trampolim.

Início da viagem: etapa na França

Para iniciar a sua missão, o Pontífice decidiu nomear o beneditino Agostinho, que na época era Prior do Célio, em Roma, superior de 40 monges. A sua principal característica não era, certamente, a coragem, mas, sem dúvida, a sua humildade e docilidade: de fato, disse sim, imediatamente.

A delegação partiu em 597, detendo-se, como primeira etapa, na França, na ilha de Lérins. Ali, os monges, acolhidos nos mosteiros da região, ouviram histórias assustadoras de todo tipo de perversidades, cometidas pelas populações britânicas, com as quais deveriam conviver, tanto que Agostinho, aterrorizado, voltou imediatamente para ter com o Papa, pedindo-lhe para mudar seu destino. Mas, São Gregório Magno não cedeu. Para animá-lo, nomeou-o Abade e, ao voltar para a Gália, o consagrou também como Arcebispo de Arles. Finalmente, ao retomarem a viagem, os monges chegaram à Inglaterra, na ilha de Thenet.

Evangelização da Grã-Bretanha

A comunidade de monges foi acolhida pelo rei de Kent, com sua consorte cristã, e os acompanharam a Cantuária, uma cidade entre Londres e o mar, escolhida como ponto de partida da nova missão: levar a Palavra de Deus aos Ingleses.

No começo, os monges se defrontaram com uma grande resistência do povo, tanto que Agostinho adotou um meio evangelização mais brando, disposto a acolher até algumas das tradições pagãs mais tradicionais. Foi um sucesso! Em apenas um ano, mais de dez mil anglo-saxões foram batizados, praticamente todo o reino de Kent, inclusive o rei (futuro Santo), que deu a Agostinho seu total apoio, abertamente. Como reconhecimento, em 601, o Papa enviou-lhe o pálio sagrado como qual o consagrava Metropolita da Inglaterra.

Antes do seu eterno descanso, Agostinho conseguiu consagrar mais duas sedes episcopais, além de Cantuária: Londres e Rochester, cujos presbíteros escolhidos foram, respectivamente, Melito e Justo.

Com o seu falecimento, em 604, seu corpo foi sepultado em Cantuária, na igreja a ele dedicada, onde é venerado por católicos e anglicanos.

Fonte: Vatican News. Acesso em: 26 mai. 2023.

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Por Mauro Nascimento