FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO: A AMEAÇA À PAZ E OS DESAFIOS DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
“A palavra ‘fundamentalismo’ passou nos últimos anos a estar presente na mídia mundial quase sempre com uma conotação assustadora. E não é para menos. Os militantes fundamentalistas estiveram por detrás da maioria dos atos de violência cometidos nas mais variadas situações geográficas. Acostumamo-nos a identificá-lo, o fundamentalismo, aos religiosos do Oriente Médio, particularmente aos imãs islâmicos, aos chefes e chefetes espirituais de países daquela região que sempre aparecem com seus trajes tradicionais, encimados por turbantes, lançando ameaças ao mundo moderno e aos americanos em geral.
Na verdade o fundamentalismo é um movimento socio-religioso e político muito diversificado e bem mais extenso do que as fronteiras do Islã. Paradoxalmente é nos Estados Unidos de hoje que encontramos o maior contingente de fundamentalistas, só que cristãos. O que se segue abaixo é uma síntese deste poderoso movimento, onde procura-se identificar os tipos de fundamentalismo bem como seus objetivos.
Antes de tudo é necessário definir o que vem a ser fundamentalismo. Designa-se assim todo e qualquer movimento religioso, de qualquer que seja a religião, que tende a interpretar a realidade de hoje através dos olhos de antigos preceitos religiosos e que renega os valores da modernidade. Para o fundamentalista o fiel deve seguir à risca as páginas dos textos sagrados da sua religião. As Escrituras (sejam elas a Bíblia, o Talmude, o Corão, ou o Hadith dos hindús) foram traçadas por Deus, logo devem ser interpretadas como a Sua vontade. Naturalmente que os fundamentalistas não aceitam o criticismo, isto é, o movimento intelectual teológico moderno (pelo menos desde Spinoza para cá) que diz que elas, as palavras sagradas, devem ser interpretadas de acordo com a época e as circunstâncias em que foram escritas e que abrigam uma enorme distância da realidade atual.
Portanto, fundamentalismo é tomar as palavras sagradas e a doutrina religiosa em seus fundamentos, radicalmente, ‘retornar aos artigos fundamentais da fé’ sem nenhuma alteração, sem nenhuma concessão. O fundamentalista não dialoga, apenas impõe sua ‘verdade’.
Toda religião, enraizada na sociedade humana, separa o grupo humano que nela se reconhece daqueles que praticam outra fé. Estabelece um território em que se definem e reforçam as identidades individuais e coletivas. À medida que diferencia uma comunidade da outra, a religião pode gerar conflitos ou servir de justificativa para confrontos violentos entre uma comunidade e outra. Ainda que as religiões preguem a paz, em todas as religiões se encontram pessoas ou grupos de crentes que vivem sua fé cultivando atitudes fundamentalistas. O envolvimento das religiões em guerras justifica perguntar se estas são fatores de guerra ou fatores de paz e se o fundamentalismo é ou não intrínseco a toda profissão religiosa. A pergunta se abriga na mesma estrutura institucional das religiões.
A crença num Deus absoluto e a total dedicação a ele da pessoa religiosa acabam justificando o absolutismo da crença. A partir de uma determinada formulação dos conteúdos de uma religião, tida como imutável, assumem-se atitudes de defesa e de luta contra toda e qualquer tentativa de reformulação, contra e qualquer mudança de comportamentos não consagrados pela tradição. O próprio serviço da verdade pode levar os líderes religiosos a atitudes autoritárias e violentas com a finalidade de evitar o relativismo, o sincretismo, o indiferentismo.
A recusa de distinguir entre conteúdos e suas formulações, a identificação do sentimento de total adesão de fé ao absoluto de Deus e a acolhida da sua auto-revelacão levam muitos crentes a assumir posturas de rígida defesa de sua profissão religiosa e comportamentos intolerantes. Chegam a ponto de não admitir a possibilidade de outras identidades, negam o direito a pensamentos e a atitudes diferentes.
No interior da comunidade de fé, eles tendem a impor sua visão da tradição como a única ortodoxa, usando todos os meios, mas particularmente o poder religioso. Pode-se verificar nesses segmentos uma busca constante dos espaços de poder, uma infiltração nos postos-chave de condução das comunidades religiosas. Através da emanação de normas categóricas e invioláveis, com penas anexas para os transgressores, da formação de grupos de controle e de denúncia, instauram um verdadeiro clima de regime. Na sociedade sua presença é também caracterizada por formas de poder.
São defensores de atitudes moralistas muito rígidas, de valores ligados à cultura tradicional, quer religiosa como social. Usam publicamente costumes que ostentam sua identidade religiosa. Divulgam suas idéias de forma particularmente polêmica contra outros crentes ainda que pertençam ao mesmo credo religioso. Na política buscam entendimentos e cumplicidade com as forças conservadoras em troca da defesa e do apoio político e legal para a conservação de seu poder religioso.
Fundamentalismo e ameaça à paz parecem, cada vez mais, dois termos inseparáveis no mundo contemporâneo. Fundamentalismo e uma maneira equivocada de viver a fé também parecem companheiros inseparáveis de viagem. A expressão do escritor José Saramago em comentário ao ato terrorista de 11 de setembro de 2001, ‘o problema é Deus’, deve servir de alerta para todos os crentes. Uma coisa é a adesão total e incondicionada a Deus, outra coisa é usar a religião em benefício de pessoas ou de grupos de poder.
Movimentos pacifistas procuram alertar sobre os riscos de atitudes fundamentalistas e contribuir para a criação de culturas de paz. No mundo religioso afirma-se cada vez mais um pluralismo de fato e de direito. O ecumenismo e o diálogo inter-religioso são apontados como caminhos irreversíveis para a reconciliação e a paz religiosa.
A missão da Igreja é desafiada a rever os paradigmas construídos em época colonial e aprofundar não somente uma espiritualidade de diálogo, mas construir um paradigma novo de missão que seja ao mesmo tempo ecumênico, inter-religioso e inter-cultural.”
Monsenhor André Sampaio
Referências:
Declaração Nostra Aetate. Acesso em: 30 mai. 2023.
Decreto Unitatis Redintegratio. Acesso em: 30 mai. 2023.
JOÃO PAULO II. Encíclica Redemptoris Missio, São Paulo: Paulinas,1990.
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E CONGREGAÇÃO PARA A EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS. Diálogo e anúncio, São Paulo: Paulinas, 1996.
TAMAYO, Juan José. Fundamentalismos y diálogo entre religiones. Madrid: Trotta,
2004.